ADI e financiamento de campanha eleitoral - 1
O Plenário iniciou julgamento de ação direta de inconstitucionalidade
proposta contra os artigos 23, §1º, I e II; 24; e 81, caput e § 1º, da
Lei 9.504/1997 (Lei das Eleições), que tratam de doações a campanhas
eleitorais por pessoas físicas e jurídicas. A ação questiona, ainda, a
constitucionalidade dos artigos 31; 38, III; 39, caput e §5º, da Lei
9.096/1995 (Lei Orgânica dos Partidos Políticos), que regulam a forma e
os limites em que serão efetivadas as doações aos partidos políticos. O
Ministro Luiz Fux, relator, julgou procedente o pedido para declarar a
inconstitucionalidade das normas impugnadas. Destacou haver três
enfoques na presente ação: o primeiro, relativo à possibilidade de
campanha política ser financiada por doação de pessoa jurídica; o
segundo, quanto aos valores e aos limites de doações às campanhas; e o
terceiro, referente ao debate sobre o financiamento com recursos do
próprio candidato. Na sequência, mencionou dados colacionados em
audiência pública realizada sobre o tema, nos quais demonstrado o
aumento de gastos em campanhas eleitorais. Enfatizou, no ponto, a
crescente influência do poder econômico sobre o processo político em
decorrência do aumento dos gastos de candidatos de partidos políticos
durante campanhas eleitorais. Registrou que, em 2002, os candidatos
gastaram 798 milhões de reais, ao passo que, em 2012, os valores
superaram 4,5 bilhões de reais, com aumento de 471% de gastos.
Explicitou que, no Brasil, o gasto seria da ordem de R$ 10,93 per
capita; na França, R$ 0,45; no Reino Unido, R$ 0,77; e na Alemanha, R$
2,21. Comparado proporcionalmente ao PIB, o Brasil estaria no topo do
ranking dos países que mais gastariam em campanhas eleitorais. Destacou
que 0,89% de toda a riqueza gerada no País seria destinada a financiar
candidaturas de cargos representativos, a superar os Estados Unidos da
América, que gastariam 0,38% do PIB.
ADI e financiamento de campanha eleitoral - 2
Em seguida, o relator refutou as preliminares de: a) ilegitimidade ativa
ad causam do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil; b) não
conhecimento da ação por impossibilidade jurídica do pedido no sentido
de que o STF instaurasse nova disciplina sobre o tema versado pelas
normas atacadas, bem assim de que impusesse ao Poder Legislativo
alteração de norma vigente; e c) inadequação da via eleita, ao argumento
de que haveria, em um único processo, pedido de ação direta de
inconstitucionalidade cumulado com ação direta de inconstitucionalidade
por omissão. No tocante a tais assertivas, destacou que as normas
questionadas revelar-se-iam aptas a figurar como objeto de controle
concentrado de constitucionalidade, porquanto consistiriam em preceitos
primários, gerais e abstratos. Além disso, sublinhou que as impugnações
veiculadas denotariam que o legislador teria se excedido no tratamento
dispensado ao financiamento de campanha. Assim, o exame da alegada
ofensa à Constituição decorreria de ato comissivo e não omissivo.
Observou, também, que o STF seria a sede própria para o presente debate.
Pontuou que reforma política deveria ser tratada nas instâncias
políticas majoritárias, porém, isso não significaria deferência cega do
juízo constitucional em relação às opções políticas feitas pelo
legislador. Frisou que os atuais critérios adotados pelo legislador no
tocante ao financiamento das campanhas eleitorais não satisfariam as
condições necessárias para o adequado funcionamento das instituições
democráticas, porque não dinamizariam seus elementos nucleares, tais
como o pluralismo político, a igualdade de chances e a isonomia formal
entre os candidatos. Inferiu ser necessária cautela ao se outorgar
competência para reforma do atual sistema àqueles diretamente
interessados no resultado dessa alteração. Aduziu não pretender defender
progressiva transferência de poderes decisórios das instituições
legislativas para o Poder Judiciário, o que configuraria processo de
juristocracia, incompatível com o regime democrático. Acentuou que,
embora a Constituição não contivesse tratamento específico e exaustivo
no que concerne ao financiamento de campanhas eleitorais, isso não
significaria que teria, nessa matéria, outorgado um cheque em branco ao
legislador, que o habilitasse a adotar critério que melhor aprouvesse.
ADI e financiamento de campanha eleitoral - 3
No mérito, o Ministro Luiz Fux julgou inconstitucional o modelo
brasileiro de financiamento de campanhas eleitorais por pessoas naturais
baseado na renda, porque dificilmente haveria concorrência equilibrada
entre os participantes nesse processo político. Sinalizou ser
fundamental que a legislação disciplinadora do processo eleitoral, da
atividade dos partidos políticos ou de seu financiamento, do acesso aos
meios de comunicação, do uso de propaganda, dentre outros, não
negligenciasse a ideia de igualdade de chances, sob pena de a
concorrência entre as agremiações se tornar algo ficcional com
comprometimento do próprio processo democrático. De igual maneira
concluiu pela inconstitucionalidade das normas no que tange ao uso de
recursos próprios por parte dos candidatos. Avaliou que essa regra
perpetuaria a desigualdade, ao conferir poder político incomparavelmente
maior aos ricos do que aos pobres.
ADI e financiamento de campanha eleitoral - 4
Quanto à autorização de doações em campanhas eleitorais por pessoa
jurídica, o relator entendeu que esse modelo não se mostraria adequado
ao regime democrático em geral e à cidadania, em particular. Ressalvou
que o exercício de cidadania, em sentido estrito, pressuporia três
modalidades de atuação física: o jus sufragius, que seria o direito de
votar; o jus honorum, que seria o direito de ser votado; e o direito de
influir na formação da vontade política por meio de instrumentos de
democracia direta como o plebiscito, o referendo e a iniciativa popular
de leis. Destacou que essas modalidades seriam inerentes às pessoas
naturais e, por isso, o desarrazoado de sua extensão às pessoas
jurídicas. Sinalizou que, conquanto pessoas jurídicas pudessem defender
bandeiras políticas, humanísticas ou causas ambientais, não significaria
sua indispensabilidade no campo político, a investir vultosas quantias
em campanhas eleitorais. Perfilhou entendimento de que a participação de
pessoas jurídicas apenas encareceria o processo eleitoral sem oferecer,
como contrapartida, a melhora e o aperfeiçoamento do debate. Apontou
que o aumento dos custos de campanhas não corresponderia ao
aprimoramento do processo político, com a pretendida veiculação de
ideias e de projetos pelos candidatos. Lembrou que, ao contrário, nos
termos do que debatido nas audiências públicas, os candidatos que
tivessem despendido maiores recursos em suas campanhas possuiriam maior
êxito nas eleições.
ADI e financiamento de campanha eleitoral - 5
Ponderou que a exclusão das doações por pessoas jurídicas não teria
efeito adverso sobre a arrecadação dos fundos por parte dos candidatos
aos cargos políticos. Rememorou que todos os partidos políticos teriam
acesso ao fundo partidário e à propaganda eleitoral gratuita nos
veículos de comunicação, a proporcionar aos candidatos e as suas
legendas, meios suficientes para promoverem suas campanhas. Repisou que o
princípio da liberdade de expressão, no aspecto político, teria como
finalidade estimular a ampliação do debate público, a permitir que os
indivíduos conhecessem diferentes plataformas e projetos políticos.
Acentuou que a excessiva participação do poder econômico no processo
político desequilibraria a competição eleitoral, a igualdade política
entre candidatos, de modo a repercutir na formação do quadro
representativo. Observou que, em um ambiente cujo êxito dependesse mais
dos recursos despendidos em campanhas do que das plataformas políticas,
seria de se presumir que considerável parcela da população ficasse
desestimulada a disputar os pleitos eleitorais.
ADI e financiamento de campanha eleitoral - 6
Com relação aos mecanismos de controle dos financiamentos de campanha,
rechaçou a afirmação da Presidência da República no sentido de que a
discussão acerca da doação por pessoa jurídica deveria se restringir aos
instrumentos de fiscalização. Aduziu que, defender que a questão da
doação por pessoa jurídica se restrinja aos mecanismos de controle e
transparência dos gastos seria insuficiente para amainar o cenário em
que o poder político mostrar-se-ia atraído pelo poder econômico.
Ressaltou que a possibilidade de que as empresas continuassem a investir
elevadas quantias — não contabilizadas (caixa dois) — nas campanhas
eleitorais não constituiria empecilho para que o STF declarasse a
desfuncionalidade do atual modelo. Assinalou a inconstitucionalidade dos
critérios de doação a campanhas por pessoas jurídicas, sob o enfoque da
isonomia entre elas, haja vista que o art. 24 da Lei das Eleições não
estende essa faculdade a toda espécie de pessoa jurídica. Enfatizou que o
aludido preceito estabelece rol de entidades que não poderiam realizar
doações em dinheiro ou estimáveis em dinheiro a candidatos ou a
partidos políticos, a exemplo das associações de classe e sindicais, bem
como entidades integrantes do terceiro setor. Realçou, como resultado
desse impedimento, que as empresas privadas — cuja maioria se destina à
atividade lucrativa — seriam as protagonistas em doações entre as
pessoas jurídicas, em detrimento das entidades sem fins lucrativos e dos
sindicatos, a desaguar em ausência de equiparação entre elas. Entendeu,
ademais, que a decisão deveria produzir seus efeitos ordinários, ex
tunc, com salvaguarda apenas das situações concretas já consolidadas até
o momento. Aduziu inexistir ofensa à segurança jurídica, porque a
própria legislação eleitoral excepcionaria o princípio da anualidade
(Lei das Eleições: “Art. 17-A. A cada eleição caberá à lei, observadas
as peculiaridades locais, fixar até o dia 10 de junho de cada ano
eleitoral ...”). Reputou que, por ser facultado ao legislador alterar
regramento de doações para campanhas eleitorais no próprio ano da
eleição, seria ilógico pugnar pela modulação de efeitos por ofensa à
regra da anualidade.
ADI e financiamento de campanha eleitoral - 7
Feitas essas considerações, o Ministro Luiz Fux julgou procedente o
pleito para: declarar a inconstitucionalidade parcial sem redução de
texto do art. 24 da Lei 9.504/1997, na parte em que autoriza, a
contrario sensu, a doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais,
com eficácia ex tunc, salvaguardadas as situações concretas consolidadas
até o presente momento, e declarar a inconstitucionalidade do art. 24,
parágrafo único, e do art. 81, caput e § 1º, da Lei 9.507/1994, também
com eficácia ex tunc, salvaguardadas as situações concretas consolidadas
até o momento. Declarar, ainda, a inconstitucionalidade parcial sem
redução de texto do art. 31 da Lei 9.096/1995, na parte em que autoriza,
a contrario sensu, a realização de doações por pessoas jurídicas a
partidos políticos, e declarar a inconstitucionalidade das expressões
“ou pessoa jurídica”, constante no art. 38, III, e “e jurídicas”,
inserta no art. 39, caput e § 5º, todos da Lei 9.096/1995, com eficácia
ex tunc, salvaguardadas as situações concretas consolidadas até o
presente momento. Da mesma forma, votou pela declaração de
inconstitucionalidade, sem pronúncia de nulidade, do art. 23, § 1º, I e
II, da Lei 9.504/1997, e do art. 39, § 5º, da Lei 9.096/1995, com
exceção da expressão “e jurídicas”, devidamente examinada no tópico
relativo à doação por pessoas jurídicas, com a manutenção da eficácia
dos aludidos preceitos pelo prazo de 24 meses. Recomendou ao Congresso
Nacional a edição de um novo marco normativo de financiamento de
campanhas, dentro do prazo razoável de 24 meses, observados os seguintes
parâmetros: a) o limite a ser fixado para doações a campanha eleitoral
ou a partidos políticos por pessoa natural, deverá ser uniforme e em
patamares que não comprometam a igualdade de oportunidades entre os
candidatos nas eleições; b) idêntica orientação deverá nortear a
atividade legiferante na regulamentação para o uso de recursos próprios
pelos candidatos; e c) em caso de não elaboração da norma pelo Congresso
Nacional, no prazo de 18 meses, será outorgado ao TSE a competência
para regular, em bases excepcionais, a matéria.
ADI e financiamento de campanha eleitoral - 8
Em antecipação de voto, o Ministro Joaquim Barbosa, Presidente,
acompanhou a manifestação do relator, exceto quanto à modulação de
efeitos. Aduziu que a questão proposta não se reduziria à indagação
sobre eventual ofensa ao princípio republicano pela permissão conferida
às pessoas jurídicas de fazerem doações financeiras a candidatos ou a
partidos políticos em virtude de suposto enfraquecimento da necessária
separação entre o espaço público e o privado. Destacou que também
estaria em discussão saber se os critérios de limitação das doações por
pessoas naturais ofenderia o princípio da igualdade por exacerbar as
desigualdades políticas. Registrou que a eleição popular seria a pedra
de toque do funcionamento democrático e dos sistemas representativos
contemporâneos. Acentuou que a formação do Estado moderno seria permeada
por um processo de rompimento com a patrimonialização do poder e que o
seu viés econômico não mais deveria condicionar o exercício do poder
político. Consignou que, no âmbito eleitoral, a Constituição (art. 14, §
9º) estabelece como dever do Estado a proteção da normalidade e da
legitimidade das eleições contra a influência do poder econômico, de
modo a impedir que o resultado das eleições fosse norteado pela lógica
do dinheiro e garantir que o valor político das ideias apresentadas pelo
candidato não dependesse do valor econômico. Em consequência, assentou
que a permissão dada às empresas de contribuírem para o financiamento de
campanhas eleitorais de partidos políticos seria inconstitucional.
Realçou que o financiamento de campanha poderia representar para as
empresas uma maneira de acesso ao campo político, pelo conhecido “toma
lá, dá cá”.
ADI e financiamento de campanha eleitoral - 9
Na assentada de 12.12.2013, também em antecipação de voto, o Ministro
Dias Toffoli perfilhou o entendimento adotado pelo relator. No entanto,
sinalizou que se pronunciaria sobre a modulação dos efeitos em momento
oportuno. Frisou que a análise do tema seria de alto relevo político e
social, tendo em conta a importância da sistemática do financiamento
eleitoral para o Estado Democrático de Direito e para a lisura e a
normalidade do pleito, na construção de um processo eleitoral
razoavelmente equânime entre os candidatos, com a livre escolha dos
representantes políticos pelos cidadãos. Ressaltou que não se
objetivaria, com o julgamento, substituir-se ao Poder Legislativo na
opção política por determinados sistemas ou modelos de financiamento do
processo eleitoral. Observou, além disso, que estariam envolvidas na
questão as cláusulas pétreas referentes aos princípios constitucionais
do Estado Democrático de Direito e da República (art. 1º, caput), da
cidadania (art. 1º, II), da soberania popular (art. 1º, parágrafo único,
e art. 14, caput), da isonomia (art. 5º, caput, e art. 14, caput) e da
proteção da normalidade e da legitimidade das eleições contra a
influência do poder econômico (art. 14, § 9º). Asseverou que o STF, no
exercício da jurisdição constitucional, deveria atuar como garante das
condições e da regularidade do processo democrático, restabelecendo o
exercício da cidadania mediante regras constitucionais de financiamento
eleitoral, de modo a preservar o Estado Democrático de Direito, a
soberania popular e a livre e igual disputa democrática, exercida,
exclusivamente, por seus atores — eleitor, candidato e partido político
—, com igualdade de chances. Reputou, no tocante ao exercício da
soberania popular, que o cidadão, pessoa física, seria o único
constitucionalmente legitimado a exercitá-la e que o momento do voto
seria a ocasião em que haveria a perfeita consumação do princípio da
igualdade, em que todos os cidadãos — ricos, pobres, de qualquer raça,
orientação sexual, credo — seriam formal e materialmente iguais entre
si. Consignou, por outro lado, inexistir comando ou princípio
constitucional que justificasse a participação de pessoas jurídicas no
processo eleitoral brasileiro, em qualquer fase ou forma, já que não
poderiam exercer a soberania pelo voto direto e secreto. Assim, admitir
que as pessoas jurídicas pudessem financiar o processo eleitoral seria
violar a soberania popular. Considerou que o financiamento de campanhas
eleitorais por pessoas jurídicas implicaria evidente influência do poder
econômico sobre as eleições, a qual estaria expressamente vedada no
art. 14, § 9º, da CF. Admiti-lo significaria possibilitar a quebra da
igualdade jurídica nas disputas eleitorais e o desequilíbrio no pleito.
Após fazer retrospecto histórico sobre a influência do poder econômico
nas práticas eleitorais no Brasil, concluiu que o financiamento
eleitoral por pessoas jurídicas representaria uma reminiscência dessas
práticas oligárquicas e da participação hipertrofiada do poder privado
na realidade eleitoral pátria, em direta afronta às cláusulas pétreas da
Constituição.
ADI e financiamento de campanha eleitoral - 10
Em antecipação de voto, o Ministro Roberto Barroso acompanhou
integralmente o relator. Destacou, de início, que a discussão não
envolveria simples reflexão sobre financiamento de campanha política e
participação de pessoas jurídicas nessa atividade. Afirmou que a questão
posta em debate diria respeito ao momento vivido pela democracia
brasileira e às relações entre a sociedade civil, a cidadania e a classe
política. Mencionou que a temática perpassaria o princípio da separação
dos Poderes, assim como o papel desempenhado por cada um deles nos
últimos 25 anos de democracia no País. Aduziu que o Poder Legislativo
estaria no centro da controvérsia relativa ao financiamento de
campanhas, haja vista se tratar do fórum, por excelência, da tomada de
decisões políticas. Observou que o grande problema do modelo político
vivido atualmente seria a dissintonia entre a classe política e a
sociedade civil, com o afastamento de ambas, decorrente da centralidade
que o dinheiro adquirira no processo eleitoral pátrio. Assinalou o
aspecto negativo de o interesse privado aparecer travestido de interesse
público. Registrou, ainda, que o sistema eleitoral brasileiro possuiria
viés antidemocrático e antirrepublicano em virtude da conjugação de
dois fatores: o sistema eleitoral proporcional com lista aberta somado à
possibilidade de financiamento privado por empresas. Realçou que o seu
voto pela inconstitucionalidade das normas não significaria condenação
genérica da participação de pessoas jurídicas no financiamento
eleitoral. Consistiria, ao revés, declaração específica no modelo em
vigor nos dias atuais, porquanto ofensivo ao princípio democrático, na
medida em que desigualaria as pessoas e os candidatos pelo poder
aquisitivo ou pelo poder de financiamento. Salientou que a ideia
subjacente à democracia seria a igualdade, ou seja, uma pessoa, um voto.
Consignou não vislumbrar que o único modelo democrático de
financiamento eleitoral fosse aquele que proibisse a participação de
pessoas jurídicas. Contudo, no atual modelo brasileiro, considerou
antirrepublicano, antidemocrático e, em certos casos, contrário à
moralidade pública o financiamento privado de campanha. Asseverou que,
embora a reforma política não pudesse ser feita pelo STF, este
desempenharia duas grandes funções: a contramajoritária (ao assentar a
inconstitucionalidade de lei aprovada por pessoas escolhidas pelas
maiorias políticas) e a representativa (ao concretizar anseios da
sociedade que estariam paralisados no processo político majoritário).
Propôs, por conseguinte, um diálogo institucional com o Congresso
Nacional no sentido do barateamento do custo das eleições, uma vez que
não bastaria coibir esse tipo de financiamento. Citou a existência de
propostas em trâmite na Casa Legislativa pela votação em lista (voto em
lista fechada ou pré-ordenada) e o voto distrital majoritário. Após, o
julgamento foi suspenso pelo pedido de vista formulado pelo Ministro
Teori Zavascki na sessão anterior.
Ação civil pública e foro por prerrogativa de função
O Plenário iniciou julgamento de agravo regimental interposto de decisão
proferida pelo Ministro Ayres Britto, que negara seguimento a pedido de
que ação civil pública, por ato de improbidade administrativa
supostamente praticado por parlamentar, fosse apreciada no STF. O
Ministro Roberto Barroso, relator, negou provimento ao recurso e
reafirmou a decisão agravada quanto à incompetência do STF para
processar e julgar o presente feito, por inexistir foro por prerrogativa
de função em ação civil pública por improbidade. Após, pediu vista dos
autos o Ministro Teori Zavascki.
PRIMEIRA TURMA
Crime praticado por civil e competência da justiça militar
Compete à justiça militar processar e julgar civil denunciado pela
suposta prática dos delitos de desacato e resistência contra militar.
Com base nesse entendimento, a 1ª Turma extinguiu habeas corpus por
inadequação da via processual. A impetração alegava a incompetência da
justiça militar e postulava a declaração de inconstitucionalidade do
art. 90-A da Lei 9.099/1995, para que fosse excluída qualquer exegese
que afastasse a aplicação da Lei 9.099/1995 aos acusados civis
indiciados ou processados perante a justiça militar. No caso, o
paciente, ao ser revistado, teria desobedecido à ordem de militares em
serviço no Complexo do Morro do Alemão — no desempenho de serviço de
vigilância, garantia e preservação da ordem pública — e contra eles
praticado violência. Rememorou-se precedente da Turma no sentido de que a
natureza militar do crime atrairia a competência da justiça militar,
mesmo que cometido por civil. Recordou-se, ademais, que o Plenário já
teria declarado a constitucionalidade do art. 90-A da Lei 9.099/1995.
Falta grave e não retorno a prisão - 2
Em conclusão de julgamento, a 1ª Turma, por maioria, extinguiu, por
inadequação da via processual, habeas corpus em que se pretendia o
afastamento de falta grave. No caso, o paciente estaria cumprindo pena
em regime semiaberto e lograra o benefício de visitação periódica ao
lar. Ciente de que a referida benesse teria sido cassada em razão de
provimento de recurso do Ministério Público, não regressara ao
estabelecimento prisional — v. Informativo 725. Esclareceu-se que não
caberia habeas corpus para o STF em substituição a recurso ordinário.
Reputou-se não haver ilegalidade flagrante ou abuso de poder que
autorizasse a concessão da ordem de ofício. Vencido o Ministro Marco
Aurélio, que deferia a ordem por entender justificada a ausência de
retorno do paciente à penitenciária.
Licença médica e dispensa
Não é possível a dispensa — com o consequente rompimento da relação
jurídica — de servidor ocupante apenas de cargo em comissão, em licença
médica para tratamento de doença. Com base nessa orientação, a 1ª Turma,
negou provimento a agravo regimental.
SEGUNDA TURMA
Processo administrativo: contraditório e ampla defesa
Por ofensa aos princípios do contraditório e da ampla defesa, a 2ª Turma
deu provimento a recurso ordinário em mandado de segurança para
declarar nulo ato administrativo e seus consectários, a fim de garantir à
impetrante manifestação prévia em processo administrativo destinado a
verificar a regularidade da concessão de benefício fiscal. Asseverou-se
que a prerrogativa de a Administração Pública controlar seus próprios
atos não dispensaria a observância dos postulados supramencionados em
âmbito administrativo. Ademais, ressaltou-se que a manifestação em
recurso administrativo não supriria a ausência de intimação da
recorrente. Pontuou-se que caberia à Administração dar oportunidade ao
interessado em momento próprio e que a impugnação, mediante recurso, de
ato que anulara benefício anteriormente concedido, mesmo diante de exame
exaustivo das razões de defesa apresentadas, não satisfaria o direito
de defesa da impetrante.
Protesto por novo júri e “tempus regit actum”
A 2ª Turma negou provimento a agravo regimental em que pretendido o
cabimento de protesto por novo júri. Na espécie, a prolação da sentença
penal condenatória ocorrera em data posterior à entrada em vigor da Lei
11.689/2008, a qual revogara o dispositivo do CPP que previa a
possibilidade de interposição do aludido recurso. Reputou-se que o art.
2º do CPP (“Art. 2º. A lei processual aplicar-se-á desde logo, sem
prejuízo da validade dos atos realizados sob a vigência da lei
anterior”) disciplinaria a incidência imediata da lei processual aos
feitos em curso, de modo que, se nova lei viesse a suprimir ou abolir
recurso existente antes da sentença, não haveria direito ao exercício
daquele. Ressaltou-se inexistir óbice à supressão de recursos na ordem
jurídica processual ou à previsão de outras modalidades recursais serem
instituídas por lei superveniente, considerado o disposto no artigo em
comento e o princípio fundamental de que a recorribilidade reger-se-á
pela lei em vigor na data em que a decisão for publicada. Por fim,
salientou-se a ausência de amparo legal do pleito, ante a observância do
princípio da taxatividade dos recursos.
Sessões | Ordinárias | Extraordinárias | Julgamentos |
Pleno | 11.12.2013 | 12.12.2013 | 19 |
1ª Turma | 10.12.2013 | — | 171 |
2ª Turma | 10.12.2013 | — | 159 |
C L I P P I N G D O D J E
9 a 13 de dezembro de 2013
EMB. DECL. NO AG. REG. NO RHC N. 117.488-RJ
RELATOR: MIN. GILMAR MENDES
Embargos de declaração em agravo regimental em
recurso ordinário em habeas corpus. 2. Não ocorrência de omissão,
contradição ou obscuridade. Efeitos infringentes. Descabimento. Caráter
protelatório. 3. Embargos de declaração rejeitados, com determinação de
baixa imediata dos autos, independentemente da publicação do acórdão.
*noticiado no Informativo 722
HC N. 105.948-MT
RELATOR: MIN. GILMAR MENDES
Habeas corpus. 2. Corrupção passiva atribuída a
magistrado estadual. 3. Rejeição da denúncia pela Corte estadual. 4.
Conversão de agravo de instrumento em recurso especial que restou
provido para, cassando o acórdão recorrido, determinar o recebimento da
peça acusatória. 5. Alegação de ilegalidade no conhecimento do AI pelo
STJ por falta de peça essencial (denúncia) e de revolvimento de provas
no julgamento do recurso especial. 6. Ausência de peça essencial ao
exame da controvérsia. As peças do instrumento, necessárias ao deslinde
da controvérsia, devem ser apresentadas no momento da interposição do
agravo, conforme preceitua o art. 544, § 1º, do CPC. A ausência implica o
não conhecimento do recurso. 7. O ônus de fiscalizar a correta formação
do instrumento é exclusivo do agravante. Precedentes. 8. Ordem
concedida, parcialmente, para anular o julgamento proferido pelo STJ no
Recurso Especial n. 1.183.584/MT, a partir da conversão do agravo de
instrumento em recurso especial e determinar seja proferida nova decisão
com base nos elementos constantes dos autos.
*noticiado no Informativo 694
EMB. DECL. NOS VIGÉSIMOS TERCEIROS EMB. DECL. JULG. NA AP N. 470-MG
RELATOR: MIN. JOAQUIM BARBOSA
EMENTA: AÇÃO PENAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. FALTA DE
FUNDAMENTO PARA APLICAÇÃO DA PENA ESTABELECIDA PELA LEI 10.763/2003.
VÍCIO INEXISTENTE. EMBARGOS DECLARATÓRIOS NÃO CONHECIDOS. RECURSO
MERAMENTE PROTELATÓRIO. EXECUÇÃO IMEDIATA DA PENA, INDEPENDENTEMENTE DE
PUBLICAÇÃO.
O acórdão embargado não deixou qualquer margem para
dúvida quanto ao fato de que o embargante praticou o delito de corrupção
passiva depois da entrada em vigor da Lei 10.763/2003.
Embargos de declaração não conhecidos.
Reconheceu-se o caráter meramente protelatório dos
embargos e decretou-se, por consequência, o trânsito em julgado da
condenação, com determinação de início imediato da execução da pena,
independentemente de publicação do acórdão.
*noticiado no Informativo 728
EMB. DECL. NOS VIGÉSIMOS PRIMEIROS EMB. DECL. JULG. NA AP N. 470-MG
RELATOR: MIN. JOAQUIM BARBOSA
EMENTA: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NOS EMBARGOS DE
DECLARAÇÃO NA AÇÃO PENAL N.470. INEXISTÊNCIA DE OMISSÃO E CONTRADIÇÃO.
EMBARGOS NÃO CONHECIDOS. RECURSO MERAMENTE PROTELATÓRIO. TRANSITO EM
JULGADO. EXECUÇÃO AUTORIZADA.
Inexistência de omissão, obscuridade ou contradição a serem sanadas nos segundos embargos declaratórios opostos pelo embargante.
As alegações de nulidade por violação dos artigos 76
e 77 do CPP e de que deveria ser indicado, expressamente, qual o item
do Regulamento do Fundo Visanet teria sido violado foram devidamente
afastadas no acórdão embargado.
Embargos de declaração com finalidade puramente
protelatória geram o imediato reconhecimento do trânsito em julgado do
acórdão condenatório. Precedentes.
Embargos de declaração não conhecidos.
Reconheceu-se o caráter meramente protelatório dos
embargos e decretou-se, por consequência, o trânsito em julgado da
condenação, com determinação de início imediato da execução da pena,
independentemente de publicação do acórdão.
*noticiado no Informativo 728
EMB. DECL. NO AG. REG. NO RE N. 748.105-DF
RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO
EMBARGOS DECLARATÓRIOS – INEXISTÊNCIA DE VÍCIO –
DESPROVIMENTO. Uma vez voltados os embargos declaratórios ao simples
rejulgamento de certa matéria e inexistente no acórdão proferido
qualquer dos vícios que os respaldam – omissão, contradição e
obscuridade –, impõe-se o desprovimento.
*noticiado no Informativo 720
QUEST. ORD. EM HC N. 119.056-DF
RELATORA: MIN. CÁRMEN LÚCIA
EMENTA: QUESTÃO DE ORDEM EM HABEAS CORPUS
PREVENTIVO. CONSTITUCIONAL. INCOMPETÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL.
HABEAS CORPUS IMPETRADO CONTRA AMEAÇA DE ATO DE DELEGADO DA POLÍCIA
FEDERAL.
1. A competência do Supremo Tribunal Federal para
julgar habeas corpus é determinada constitucionalmente em razão do
Paciente ou da Autoridade Coatora (art. 102, inc. I, alínea i, da
Constituição da República).
2. Questão de ordem resolvida no sentido de
reconhecer a incompetência do Supremo Tribunal Federal para processar e
julgar o habeas corpus n. 119056-DF, determinando a remessa dos autos a
uma das Varas Federais da Seção Judiciária do Distrito Federal.
*noticiado no Informativo 722
VIGÉSIMO TERCEIRO AG. REG. NA AP N. 470-MG
RELATOR: MIN. JOAQUIM BARBOSA
EMENTA: AÇÃO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL. PLURALIDADE
DE RÉUS COM DIFERENTES DEFENSORES. DOBRA DO PRAZO PARA EMBARGOS DE
DECLARAÇÃO. PROVIMENTO PARCIAL.
O Pleno do Supremo Tribunal Federal, ao julgar o 22º
agravo regimental, concedeu prazo em dobro (dez dias) para a oposição
de embargos de declaração contra acórdão proferido na ação penal 470.
Provimento parcial do recurso, para aplicar o mesmo
entendimento ao agravante, à acusação e aos demais corréus (art. 580 do
Código de Processo Penal).
AG. REG. NA MED. CAUT. NA AC N. 2.821-AM
RELATOR: MIN. LUIZ FUX
EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL. INDEFERIMENTO DE MEDIDA
LIMINAR EM CAUTELAR INOMINADA. REQUERIMENTO DE ATRIBUIÇÃO DE EFEITO
SUSPENSIVO A RECURSO EXTRAORDINÁRIO. “PREFEITO ITINERANTE”. CANDIDATURA
EM MUNICÍPIO DIVERSO, APÓS EXERCÍCIO DE DOIS MANDATOS EM MUNICÍPIO
CONTÍGUO. MANDATO JÁ EXAURIDO. AGRAVO REGIMENTAL PREJUDICADO.
*noticiado no Informativo 708
MS N. 25.916-DF
RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO
ANISTIA – APOSENTADORIA – INSTITUTOS – DIVERSIDADE.
Os institutos da anistia e da aposentadoria são diversos, quando a
primeira não envolve, explicitamente, a segunda, cabendo ao Tribunal de
Contas da União, a teor do disposto no artigo 71, inciso III, da
Constituição Federal, examinar o atendimento dos requisitos legais
considerado o processo de registro da aposentadoria.
*noticiado no Informativo 720
ARE N. 638.195-RS
RELATOR: MIN. JOAQUIM BARBOSA
EMENTA: CONSTITUCIONAL. FINANCEIRO. REQUISIÇÃO DE
PEQUENO VALOR. CORREÇÃO MONETÁRIA E JUROS DE MORA. APURAÇÃO ENTRE A DATA
DE REALIZAÇÃO DA CONTA DOS VALORES DEVIDOS E A EXPEDIÇÃO DA RPV.
RELEVÂNCIA DO LAPSO TEMPORAL. CABIMENTO.
REPERCUSSÃO GERAL RECONHECIDA QUANTO AO CABIMENTO DA APLICAÇÃO DE CORREÇÃO MONETÁRIA.
1. “O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, CONHECENDO DO
RECURSO EXTRAORDINÁRIO, JULGARÁ A CAUSA, APLICANDO O DIREITO À ESPÉCIE”
(Súmula 456/STF). Aplicabilidade ao recurso extraordinário em exame.
2. É devida correção monetária no período
compreendido entre a data de elaboração do cálculo da requisição de
pequeno valor - RPV e sua expedição para pagamento.
Recurso extraordinário conhecido, ao qual se dá
parcial provimento, para cassar o acórdão-recorrido, de modo que o TJ/RS
possa dar continuidade ao julgamento para definir qual é o índice de
correção monetária aplicável em âmbito estadual.
*noticiado no Informativo 708
Acórdãos Publicados: 427
T R A N S C R I Ç Õ E S
Com a finalidade de proporcionar aos leitores do
INFORMATIVO STF uma compreensão mais aprofundada do pensamento do
Tribunal, divulgamos neste espaço trechos de decisões que tenham
despertado ou possam despertar de modo especial o interesse da
comunidade jurídica.
TCU – Desconsideração da Personalidade Jurídica – Poderes Implícitos – Princípio da Legalidade (Transcrições)
MS 32.494-MC/DF*
RELATOR: Ministro Celso de Mello
EMENTA: PROCEDIMENTO ADMINISTRATIVO E
DESCONSIDERAÇÃO EXPANSIVA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. “DISREGARD
DOCTRINE” E RESERVA DE JURISDIÇÃO: EXAME DA POSSIBILIDADE DE A
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA, MEDIANTE ATO PRÓPRIO, AGINDO “PRO DOMO SUA”,
DESCONSIDERAR A PERSONALIDADE CIVIL DA EMPRESA, EM ORDEM A COIBIR
SITUAÇÕES CONFIGURADORAS DE ABUSO DE DIREITO OU DE FRAUDE. A COMPETÊNCIA
INSTITUCIONAL DO TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO E A DOUTRINA DOS PODERES
IMPLÍCITOS. INDISPENSABILIDADE, OU NÃO, DE LEI QUE VIABILIZE A
INCIDÊNCIA DA TÉCNICA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA EM
SEDE ADMINISTRATIVA. A ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA E O PRINCÍPIO DA
LEGALIDADE: SUPERAÇÃO DE PARADIGMA TEÓRICO FUNDADO NA DOUTRINA
TRADICIONAL? O PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA: VALOR
CONSTITUCIONAL REVESTIDO DE CARÁTER ÉTICO-JURÍDICO, CONDICIONANTE DA
LEGITIMIDADE E DA VALIDADE DOS ATOS ESTATAIS. O ADVENTO DA LEI Nº
12.846/2013 (ART. 5º, IV, “e”, E ART. 14), AINDA EM PERÍODO DE “VACATIO
LEGIS”. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA E O POSTULADO DA
INTRANSCENDÊNCIA DAS SANÇÕES ADMINISTRATIVAS E DAS MEDIDAS RESTRITIVAS
DE DIREITOS. MAGISTÉRIO DA DOUTRINA. JURISPRUDÊNCIA. PLAUSIBILIDADE
JURÍDICA DA PRETENSÃO CAUTELAR E CONFIGURAÇÃO DO “PERICULUM IN MORA”.
MEDIDA LIMINAR DEFERIDA.
DECISÃO: Trata-se de mandado de segurança, com
pedido de medida liminar, impetrado com o objetivo de questionar a
validade jurídica de deliberação que, emanada do E. Tribunal de Contas
da União (Processo TC-000.723/2013-4), acha-se consubstanciada em
acórdão assim ementado:
“REPRESENTAÇÃO. LICITAÇÃO, NA MODALIDADE PREGÃO,
PROMOVIDA PELA **, PARA AQUISIÇÃO DE TRILHOS. IRREGULARIDADES
GRAVÍSSIMAS. NULIDADES. CONCESSÃO DE MEDIDA CAUTELAR PARA PARALISAÇÃO
DOS PROCEDIMENTOS. OITIVA DE TODOS OS PARTICIPANTES DO PROCESSO.
REVOGAÇÃO DO PREGÃO PELA **, POSTERIORMENTE À DEMONSTRAÇÃO PELO TCU DAS
NULIDADES. PROCEDIMENTO LICITATÓRIO COM UMA ÚNICA POSSIBILIDADE DE
FORNECEDOR, DADA A MAGNITUDE DO OBJETO. INEQUÍVOCO DIRECIONAMENTO DA
LICITAÇÃO. PRÁTICA DE ATOS COM ABUSO DA PERSONALIDADE JURÍDICA.
SIMULAÇÃO. APLICAÇÃO DA TEORIA DA DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE
JURÍDICA. EXTENSÃO DA SANÇÃO APLICADA, COM FUNDAMENTO NO ART. 7º DA LEI
DO PREGÃO, PARA EMPRESA VINCULADA. CONHECIMENTO. PROCEDÊNCIA PARCIAL DA
REPRESENTAÇÃO POR MÚLTIPLOS FUNDAMENTOS. DETERMINAÇÕES. CIÊNCIA.
…...................................................................................................
- A aplicação da sanção prevista no art. 7º da Lei
nº 10.520/2002 – que institui o pregão como modalidade de licitação,
para aquisição de bens e serviços comuns – impede a participação do
licitante em procedimentos licitatórios e a celebração de contratos com
todas as entidades do respectivo ente estatal, União, Estados, Distrito
Federal ou Municípios, implicando seu descredenciamento dos sistemas de
cadastramento de fornecedores, pelo prazo de até cinco anos, com
extensão a toda a esfera do órgão ou entidade que a aplicou.
- A sanção prevista no art. 7º da Lei 10.520/2002
deixa explícita a vontade do legislador, no sentido de efetivamente
punir as empresas que cometam ilícitos administrativos, não somente na
restritíssima esfera da entidade que promoveu a licitação e sofreu os
efeitos da conduta lesiva da licitante, mas de alijá-la de todas as
licitações promovidas nas respectivas esferas federal, estadual, do DF e
municipal, por até 5 anos, sem prejuízo das multas e das demais
cominações legais, constituindo sanção gravíssima que materializa a
jurisprudência do STJ em relação a similar dispositivo da Lei 8.666,
cuja interpretação, no TCU, mereceu do Plenário visão bem mais
restritiva.
- Também por imposição dos princípios da moralidade
administrativa e da indisponibilidade dos interesses públicos, a
Administração Pública pode desconsiderar a personalidade jurídica de
sociedades constituídas com abuso de forma e fraude à lei, para a elas
estender os efeitos da sanção administrativa, em vista de suas
peculiares circunstâncias e relações com a empresa suspensa de licitar e
contratar com a Administração.
- Por múltiplos fundamentos, o caso concreto ostenta
nítido conteúdo de nulidades insanáveis, tratando-se de hipótese de
declaração de nulidade de todo o procedimento e não de revogação,
ocorrente apenas por razões de interesse público.”
(Acórdão nº 2593/2013, Rel. Min. WALTON ALENCAR RODRIGUES – grifei)
A parte ora impetrante sustenta que essa
deliberação, além de transgredir os diplomas normativos que dispõem
sobre o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, também
ofendeu o texto da Constituição da República, notadamente os seus arts.
1º, inciso IV, 5º, inciso XLV, e 71, assinalando que o E. Tribunal de
Contas da União teria atuado além dos limites de sua competência
institucional, apoiando-se, os autores do presente “writ”, nas seguintes
alegações:
“(…) o Acórdão nº 2.593/2013 – TCU, inovando em
relação ao objeto inicial do processo, julgou procedente a representação
para estender à Impetrante uma sanção administrativa (de suspensão do
direito de licitar) que fora aplicada pela ** a outra pessoa jurídica, a
empresa **.
Essa questão surgiu nos autos do processo
administrativo por iniciativa da área técnica do TCU. Ao opinar pelo
deferimento da medida cautelar, o auditor da Corte de Contas alegou que a
Impetrante teria os mesmos sócios, o mesmo endereço e mesmo fornecedor
de trilhos da empresa **, o que, segundo entendeu, permitiria concluir
que a ** (Impetrante) ‘integra o mesmo grupo da **’.
…...................................................................................................
4.2. Em 26.8.2013, após a Impetrante refutar as
acusações de que se confundiria com a empresa **, a área técnica
manifestou-se novamente, nessa ocasião sugerindo que o próprio TCU
estendesse a penalidade da outra pessoa jurídica à Impetrante (doc. 09).
5. Em seguida, o processo foi julgado pelo Plenário
do E. TCU, prevalecendo o voto do d. Ministro Relator, que acolheu
integralmente o segundo parecer da área técnica e concluiu por estender à
empresa Impetrante penalidade à qual está submetida outra pessoa
jurídica, a empresa **. (doc. 10). Esse é o ato coator combatido pelo
presente ‘writ’.
6. A deliberação do E. TCU, com todo o respeito, é flagrantemente ilegal e viola direito líquido e certo dos Impetrantes.
6.1. Primeiro, a Corte de Contas não dispõe de
competência constitucional ou legal para estender ou ampliar a
abrangência de sanções administrativas aplicadas por outros entes
públicos.
6.2. Depois, o ato coator partiu de premissas
equivocadas (com respeito) ao se valer da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica, que não encontra no caso concreto os
pressupostos elementares indispensáveis à sua aplicação. A prova
documental reunida pelo TCU conduz ao resultado oposto ao do ato ora
impugnado.
6.3. Por fim, é inequívoco que o ato coator viola o
direito à livre iniciativa dos Impetrantes, pessoas físicas e jurídica
autônomas e distintas da empresa ** e dos seus respectivos sócios.”
(grifei)
Busca-se, na presente sede cautelar, a concessão de
provimento liminar, para “determinar a imediata suspensão do item 9.4.
do Acórdão nº 2.593/2013 – TCU – Plenário, que sancionou ilegalmente a
empresa Impetrante” (grifei).
Sendo esse o contexto, passo a examinar a postulação
cautelar deduzida pela parte ora impetrante. E, ao fazê-lo, entendo
relevante destacar, desde logo, aspectos significativos da presente
controvérsia mandamental, tais como as questões pertinentes (a) à
competência institucional do Tribunal de Contas da União, (b) à teoria
da desconsideração da personalidade jurídica, (c) à possibilidade, ou
não, de ser ela aplicável em sede administrativa e (d) à compatibilidade
da desconsideração expansiva da personalidade jurídica com os
princípios da legalidade e da intranscendência das sanções
administrativas e das medidas restritivas de ordem jurídica.
O E. Tribunal de Contas da União, ao proferir o
acórdão objeto do presente mandado de segurança, assim se pronunciou
sobre o tema concernente à doutrina da desconsideração expansiva da
personalidade jurídica:
“75. A aplicação da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica tem por objetivo coibir o uso indevido da pessoa
jurídica, levada a efeito mediante a utilização da pessoa jurídica
contrária a sua função social e aos princípios consagrados pelo
ordenamento jurídico, afastando, assim, a autonomia patrimonial para
chegar à responsabilização dos sócios da pessoa jurídica e/ou para
coibir os efeitos de fraude ou ilicitude comprovada. (…).
76. A doutrina e a jurisprudência dos tribunais já
consideram que um desdobramento dessa teoria é a possibilidade de
estender os seus efeitos a outras empresas, diante das circunstâncias e
provas do caso concreto específico. Trata-se da teoria da
desconsideração expansiva da personalidade jurídica da sociedade,
terminologia utilizada pelo Prof. Rafael Mônaco (…).
77. Com a teoria da desconsideração expansiva da
personalidade jurídica, é possível estender os efeitos da
desconsideração da personalidade jurídica aos ‘sócios ocultos’ para
responsabilizar aquele indivíduo que coloca sua empresa em nome de um
terceiro ou para alcançar empresas de um mesmo grupo econômico (…).
80. No âmbito administrativo, a doutrina e a
jurisprudência vêm firmando entendimento de ser viável a aplicação da
teoria da desconsideração da personalidade jurídica e a extensão de seus
efeitos para afastar a possibilidade de uma empresa que tenha sido
suspensa ou impedida de participar de licitação ou contratar com a
Administração Pública, ou ainda, declarada inidônea, possa ter seus
sócios integrando, direta ou indiretamente, outra pessoa jurídica que
participe de licitação com o Poder Público.” (grifei)
Tenho para mim, em juízo de mera delibação (em
afirmação compatível, portanto, com esta fase de incompleta cognição),
que o E. Tribunal de Contas da União, ao exercer o controle de
legalidade sobre os procedimentos licitatórios sujeitos à sua
jurisdição, possuiria atribuição para estender a outra pessoa ou
entidade envolvida em prática comprovadamente fraudulenta ou cometida em
colusão com terceiros a sanção administrativa que impôs, em momento
anterior, a outro licitante (ou contratante), desde que reconheça, em
cada situação que se apresente, a ocorrência dos pressupostos
necessários à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade
jurídica, pois essa prerrogativa também comporia a esfera de atribuições
institucionais daquela E. Corte de Contas, que se acha
instrumentalmente vocacionada a tornar efetivo o exercício das múltiplas
e relevantes competências que lhe foram diretamente outorgadas pelo
próprio texto da Constituição da República.
Isso significa que a atribuição de poderes
explícitos ao Tribunal de Contas, como enunciados no art. 71 da Lei
Fundamental da República, supõe que se lhe reconheça, ainda que por
implicitude, a titularidade de meios destinados a viabilizar a adoção de
medidas vocacionadas a conferir real efetividade às suas deliberações
finais, permitindo, assim, que se neutralizem situações de lesividade,
atual ou iminente, ao erário e ao ordenamento positivo.
Impende considerar, no ponto, em ordem a legitimar
esse entendimento, a formulação que se fez em torno dos poderes
implícitos, cuja doutrina, construída pela Suprema Corte dos Estados
Unidos da América, no célebre caso McCULLOCH vs. MARYLAND (1819),
enfatiza que a outorga de competência expressa a determinado órgão
estatal importa em deferimento implícito, a esse mesmo órgão, dos meios
necessários à integral realização dos fins que lhe foram atribuídos.
Cabe assinalar, ante a sua extrema pertinência, o
autorizado magistério de MARCELLO CAETANO (“Direito Constitucional”,
vol. II/12-13, item n. 9, 1978, Forense), cuja observação, no tema,
referindo-se aos processos de hermenêutica constitucional, assinala que,
“Em relação aos poderes dos órgãos ou das pessoas físicas ou jurídicas,
admite-se, por exemplo, a interpretação extensiva, sobretudo pela
determinação dos poderes que estejam implícitos noutros expressamente
atribuídos” (grifei).
A Suprema Corte, ao exercer o seu poder de indagação
constitucional – consoante adverte CASTRO NUNES (“Teoria e Prática do
Poder Judiciário”, p. 641/650, 1943, Forense) –, deve ter presente,
sempre, essa técnica lógico-racional, fundada na teoria jurídica dos
poderes implícitos, para, através dela, conferir eficácia real ao
conteúdo e ao exercício de dada competência constitucional, como a de
que ora se cuida, consideradas as atribuições do Tribunal de Contas da
União, como expressamente relacionadas no art. 71 da Constituição da
República.
Essa compreensão do tema tem sido manifestada pelo
Supremo Tribunal Federal em julgamentos, colegiados e monocráticos (MS
24.510/DF, Rel. Min. ELLEN GRACIE – MS 26.094/DF, Rel. Min. DIAS TOFFOLI
– MS 26.547-MC/DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO), nos quais esta Corte,
apoiando-se, precisamente, na doutrina dos poderes implícitos, reconhece
que a Alta Corte de Contas dispõe dos meios necessários à plena
concretização de suas atribuições constitucionais, ainda que não
referidos, explicitamente, no texto da Lei Fundamental.
É por isso que, em juízo de sumária cognição,
parece-me revestir-se de legitimidade constitucional a possibilidade
teórica de aplicação da “disregard doctrine”, que permitiria ao Tribunal
de Contas da União adotar as medidas necessárias ao fiel cumprimento de
suas funções institucionais e ao pleno exercício das competências que
lhe foram outorgadas, diretamente, pela própria Constituição da
República.
Registro que a posição dos que entendem possível a
aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica por ato
de índole administrativa foi acolhida pelo E. Superior Tribunal de
Justiça:
“ADMINISTRATIVO. RECURSO ORDINÁRIO EM MANDADO DE
SEGURANÇA. LICITAÇÃO. SANÇÃO DE INIDONEIDADE PARA LICITAR. EXTENSÃO DE
EFEITOS À SOCIEDADE COM O MESMO OBJETO SOCIAL, MESMOS SÓCIOS E MESMO
ENDEREÇO. FRAUDE À LEI E ABUSO DE FORMA. DESCONSIDERAÇÃO DA
PERSONALIDADE JURÍDICA NA ESFERA ADMINISTRATIVA. POSSIBILIDADE.
PRINCÍPIO DA MORALIDADE ADMINISTRATIVA E DA INDISPONIBILIDADE DOS
INTERESSES PÚBLICOS.
- A constituição de nova sociedade, com o mesmo
objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço, em
substituição a outra declarada inidônea para licitar com a Administração
Pública Estadual, com o objetivo de burlar a aplicação da sanção
administrativa, constitui abuso de forma e fraude à Lei de Licitações,
Lei n.º 8.666/93, de modo a possibilitar a aplicação da teoria da
desconsideração da personalidade jurídica para estenderem-se os efeitos
da sanção administrativa à nova sociedade constituída.
A Administração Pública pode, em observância ao
princípio da moralidade administrativa e da indisponibilidade dos
interesses públicos tutelados, desconsiderar a personalidade jurídica de
sociedade constituída com abuso de forma e fraude à lei, desde que
facultados ao administrado o contraditório e a ampla defesa em processo
administrativo regular.
- Recurso a que se nega provimento.”
(RMS 15.166/BA, Rel. Min. CASTRO MEIRA – grifei)
De outro lado, e a despeito de o instituto da
desconsideração da personalidade jurídica somente haver sido objeto de
regulação legislativa em tempos mais recentes, como se verifica do
Código Civil (art. 50) e dos diversos microssistemas legais, como
aqueles resultantes do Código de Defesa do Consumidor (art. 28), da Lei
nº 9.615/98 (“Lei Pelé”, art. 27), da Lei Ambiental (Lei nº 9.605/98,
art. 4º) e da Lei nº 12.529/2011 (art. 34), entre outros instrumentos
normativos, parece-me que a ausência de autorização legal outorgando ao
Tribunal de Contas da União competência expressa para promover “the
lifting of the corporate veil” não violaria, aparentemente, o postulado
da legalidade, eis que a aplicação, em nosso sistema jurídico, da
“disregard doctrine”, como sabemos, precedeu, em muitos anos, a própria
edição dos diplomas legislativos anteriormente referidos, como resulta
de decisões proferidas por nossos Tribunais judiciários (RT 511/199 – RT
560/109 – RT 568/108 – RT 654/182-183 – RT 657/86 – RT 657/120 – RT
660/181 – RT 673/160) e reconhece o magistério da doutrina (RUBENS
REQUIÃO, “Abuso de Direito e Fraude Através da Personalidade Jurídica”,
RT 410/1-12; ROGÉRIO LAURIA TUCCI, “Direito Processual Civil e Direito
Privado – Ensaios e Pareceres”, p. 162/164, item n. 5, 1989, Saraiva,
v.g.).
Não constitui demasia relembrar, neste ponto, na
linha de pioneiro estudo realizado, em 1969, pelo saudoso Professor
RUBENS REQUIÃO (“Abuso de Direito e Fraude Através da Personalidade
Jurídica”, RT 410/1-12), a lição definitiva de FÁBIO ULHOA COELHO
(“Curso de Direito Comercial – Direito de Empresa”, vol. 2/60, item n.
2, 16ª ed., 2012, Saraiva) a respeito da matéria ora em análise, na qual
enfatiza a desnecessidade de legislação específica para viabilizar a
aplicação, em nosso sistema jurídico, da “disregard doctrine”:
“Na doutrina brasileira, ingressa a teoria no final
dos anos 1960, numa conferência de Rubens Requião (1977:67/86). Nela, a
teoria é apresentada como superação do conflito ente as soluções éticas,
que questionam a autonomia patrimonial da pessoa jurídica para
responsabilizar sempre os sócios, e as técnicas, que se apegam
inflexivelmente ao primado da separação subjetiva das sociedades.
Requião sustenta, também, a plena adequação ao direito brasileiro da
teoria da desconsideração, defendendo a sua utilização pelos juízes,
independentemente de específica previsão legal. Seu argumento básico é o
de que as fraudes e os abusos perpetrados através da pessoa jurídica
não poderiam ser corrigidos caso não adotada a ‘disregard doctrine’ pelo
direito brasileiro. De qualquer forma, é pacífico na doutrina e na
jurisprudência que a desconsideração da personalidade jurídica não
depende de qualquer alteração legislativa para ser aplicada, na medida
em que se trata de instrumento de repressão a atos fraudulentos. Quer
dizer, deixar de aplicá-la, a pretexto de inexistência de dispositivo
legal expresso, significaria o mesmo que amparar a fraude.” (grifei)
É importante acentuar que a aplicação do instituto
da desconsideração (“disregard doctrine”), por parte do Tribunal de
Contas da União, encontraria suporte legitimador não só na teoria dos
poderes implícitos, mas, também, no princípio constitucional da
moralidade administrativa, que representa um dos vetores que devem
conformar e orientar a atividade da Administração Pública (CF, art. 37,
“caput”), em ordem a inibir o emprego da fraude e a neutralizar a
prática do abuso de direito, que se revelam comportamentos incompatíveis
com a essência ética do Direito.
Cumpre ressaltar que a desconsideração da
personalidade jurídica constitui meio, embora de caráter extraordinário
(ADA PELLEGRINI GRINOVER, “Da Desconsideração da Pessoa Jurídica –
Aspectos de Direito Material e Processual”, “in” Revista Forense, vol.
371/3-15, 7; ARRUDA ALVIM, “Desconsideração da Personalidade Jurídica”,
“in” “Direito Comercial – Estudos e Pareceres”, p. 63/80, 67; JOSÉ
EDWALDO TAVARES BORBA, “Direito Societário”, p. 33, 1997, Freitas
Bastos, v.g.), destinado a coibir o abuso de direito e a inibir a
prática de fraude mediante indevida manipulação do instituto da
personalidade civil.
Torna-se relevante observar que a denominada
“disregard doctrine” representa um importante contributo teórico que
permite ao Estado, agindo na perspectiva de uma dada situação concreta,
afastar, “hic et nunc”, de modo pontual, a personalidade jurídica de
determinada entidade, em ordem a neutralizar a ocorrência de confusão
patrimonial, de desvio de finalidade, de práticas abusivas e desleais ou
de cometimento de atos ilícitos, além de, no plano das relações
jurídicas com a Pública Administração, também prevenir ofensa ao
postulado da moralidade e de resguardar a incolumidade do erário.
Cabe enfatizar que a desconsideração da
personalidade jurídica, quer seja analisada sob a égide da teoria maior,
quer seja discutida sob a perspectiva da teoria menor (REsp 279.273/SP,
Rel. p/ o acórdão. Min. NANCY ANDRIGHI), não implica extinção da
personalidade civil nem afeta a liberdade de iniciativa, pois as
sociedades personificadas (simples ou empresárias) preservam tanto a sua
autonomia jurídico-institucional, quanto a sua autonomia patrimonial em
relação a terceiros.
É por essa razão que os autores advertem, ao
versarem o tema da desconsideração da personalidade jurídica, que a
aplicação dessa doutrina permite, como observa FÁBIO ULHOA COELHO
(“Desconsideração da Personalidade Jurídica”, p. 54, 1989, RT), a
superação pontual, transitória e episódica “da eficácia do ato
constitutivo da pessoa jurídica”, desde que se torne possível “verificar
que ela foi utilizada como instrumento para a realização de fraude ou
abuso de direito”.
Resta indagar, neste ponto, se se mostra lícito à
Administração Pública valer-se da teoria da desconsideração da
personalidade jurídica para proteger, em sede estritamente
administrativa, o interesse público primário, invocando, para tanto,
muito mais do que autorização legislativa, a própria autoridade que
emana, diretamente, dos princípios constitucionais que regem, em nosso
sistema jurídico, a atividade administrativa.
Trata-se de questão que, examinada em passagem
anterior desta decisão, põe em evidência o tema da atuação
administrativa do Estado em face do princípio da legalidade.
Ninguém desconhece, quanto a referido tópico, que a
atividade da Administração Pública, segundo o magistério tradicional
(HELY LOPES MEIRELLES, “Direito Administrativo Brasileiro”, p. 89, item
n. 2.3.1, 37ª ed., 2011, Malheiros, v.g.), constitui atividade “ex
lege”, a significar – considerada tal perspectiva – que o aparelho
administrativo do Estado apenas poderá agir segundo o que dispuser a
lei, eis que, “na Administração Pública, só é permitido fazer o que a
lei autoriza”.
É certo, no entanto, que essa concepção tem sido
criticada por diversos doutrinadores (MARIA SYLVIA ZANELLA DI PIETRO,
“Direito Administrativo”, p. 29/30, item n. 1, e p. 64/65, item n.
3.3.1, 25ª ed., 2012, Atlas, v.g.) em razão do processo de
constitucionalização do Direito Administrativo, cujo reconhecimento
permite asserir, consoante observa GUSTAVO BINENBOJM (“Temas de Direito
Administrativo e Constitucional”, p. 6, item n. II, 2008, Renovar), que
“(...) a Constituição, e não mais a lei, passa a situar-se no cerne da
vinculação administrativa à juridicidade” (grifei).
Vê-se, daí, que a compreensão do tema da “disregard
doctrine”, examinado sob o ângulo dos poderes da Administração Pública,
tal seja a posição que se venha a adotar, pode importar na superação do
paradigma teórico que nega aos órgãos administrativos, na visão da
doutrina tradicional, a possibilidade de manifestarem vontade autônoma
naqueles casos em que inexistir legislação específica.
Essa discussão da matéria, por isso mesmo, deverá
considerar a tendência que hoje postula “a revisão dos paradigmas
teóricos do Direito Administrativo”.
Daí a observação de RICARDO WATANABE
(“Desconsideração da Personalidade Jurídica no Âmbito das Licitações”),
cujo magistério sobre o tema, orientando-se no sentido que postula a
revisão desse paradigma teórico, vai a seguir reproduzido:
“A atuação administrativa deve se pautar pela
observância dos princípios constitucionais, explícitos ou implícitos,
deles não podendo afastar-se sob pena de nulidade do ato administrativo
praticado. O art. 37 da Constituição Federal prevê expressamente que ‘a
administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos
princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e
eficiência’.
Daí a indagação: com base no princípio da
legalidade, aplica-se a teoria da desconsideração da personalidade
jurídica na esfera administrativa, apesar de não haver norma específica
prevendo tal conduta da Administração Pública?
Em primeiro lugar, é importante ressaltar que o
princípio da legalidade obriga a administração pública a somente agir,
no exercício de sua atividade funcional, conforme expressa previsão na
lei. A Administração Pública não possui vontade pessoal.
No entanto, além do princípio da legalidade, existem
outros aplicáveis especificamente às licitações, quais sejam: isonomia;
publicidade; impessoalidade; moralidade; probidade administrativa;
vinculação ao instrumento convocatório e adjudicação compulsória (Lei nº
8.666/93).
No caso de fraude no procedimento licitatório, há
evidente ofensa ao princípio da moralidade. Uma empresa constituída com
desvio de finalidade, com abuso de forma e em nítida fraude à lei, que
venha a participar de processos licitatórios, abrindo-se a possibilidade
de que a mesma tome parte em um contrato firmado com o Poder Público,
afronta os princípios de direito administrativo.
…...................................................................................................
Destarte, o simples fato de não haver norma
específica autorizando a desconsideração da personalidade jurídica não
pode impor à Administração que permita atos que afrontem a moralidade
administrativa e os interesses públicos envolvidos.(...). Daí porque
aplica-se, com uma maior flexibilidade, a teoria da desconsideração da
personalidade jurídica na esfera administrativa.
Ora, até com base no próprio princípio da
legalidade, não parece razoável permitir o abuso de direitos e a
validade de ato praticado com manifesto intuito de fraudar a lei.”
(grifei)
É preciso ressaltar que a atividade estatal,
qualquer que seja o domínio institucional de sua incidência, está
necessariamente subordinada à observância de parâmetros ético-jurídicos
que se refletem na consagração constitucional do princípio da moralidade
administrativa.
Esse postulado fundamental, que rege a atuação do
Poder Público, confere substância e dá expressão a uma pauta de valores
éticos em que se funda a ordem positiva do Estado.
É por essa razão que o princípio constitucional da
moralidade administrativa, ao impor limitações ao exercício do poder
estatal, legitima o controle externo de todos os atos, quer os emanados
do Poder Público, quer aqueles praticados por particulares que venham a
colaborar com o Estado na condição de licitantes ou contratados e que
transgridam os valores éticos que devem pautar o comportamento dos
órgãos e agentes governamentais.
Impõe-se registrar, por necessário, ainda que esta
afirmação não envolva qualquer manifestação conclusiva sobre a presente
controvérsia mandamental, que a possibilidade de aplicação da
desconsideração da personalidade jurídica por órgãos administrativos,
desde que utilizada como meio de coibir o abuso de direito e o
desrespeito aos princípios que condicionam a atividade do Estado, tem
sido reconhecida por autorizado magistério doutrinário (JOSÉ DOS SANTOS
CARVALHO FILHO, “Manual de Direito Administrativo”, p. 969, item n. 7.5,
25ª ed., 2012, Atlas; MARIANNA MONTEBELLO “Os Tribunais de Contas e a
‘Disregard Doctrine’”; FLAVIA ALBERTIN DE MORAES “A Teoria da
Desconsideração da Personalidade Jurídica e o Processo Administrativo
Punitivo”, “in” RDA 252/45-55; SUZY ELIZABETH CAVALCANTE KOURY, “A
Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica: aplicação no
direito administrativo”; JESSÉ TORRES PEREIRA JUNIOR e MARINÊS
RESTELATTO DOTTI, “A Desconsideração da Personalidade Jurídica em Face
de Impedimentos para Participar de Licitações e Contratar com a
Administração Pública: limites jurisprudenciais”; MARIANA ROCHA CORRÊA,
“A Eficácia da Desconsideração Expansiva da Personalidade Jurídica no
Sistema Jurídico Brasileiro”, 2011, EMERJ, v.g.), valendo referir, em
face de sua precisa análise, fragmento da obra de MARÇAL JUSTEN FILHO
(“Comentários à Lei de Licitações e Contratos Administrativos”, p.
955/956, item n. 6, 15ª ed., 2012, Dialética):
“6) Desconsideração da pessoa jurídica
Tema que tem merecido pequena atenção no âmbito da
contratação administrativa é o da desconsideração da pessoa jurídica,
que já foi referido de passagem acima, nos comentários ao art. 9º.
Trata-se de doutrina desenvolvida no âmbito do direito comparado,
destinada a reprimir a utilização fraudulenta de pessoas jurídicas. Não
se trata de ignorar distinção entre a pessoa da sociedade e a de seus
sócios, que era formalmente consagrada pelo art. 20 do Código
Civil/1916. Quando a pessoa jurídica for a via para realização da
fraude, admite-se a possibilidade de superar-se sua existência. Essa
questão é delicada, mas está sendo enfrentada em todos os ramos do
Direito. Nada impede sua aplicação no âmbito do Direito Administrativo,
desde que adotadas as cautelas cabíveis e adequadas. Não se admite que
se pretenda ignorar a barreira da personalidade jurídica sempre que tal
se revele inconveniente para a Administração. A desconsideração da
personalidade societária pressupõe a utilização ilegal, abusiva e
contrária às boas práticas da vida empresarial. E a desconsideração deve
ser precedida de processo administrativo específico em que sejam
assegurados a ampla defesa e o contraditório a todos os interessados.”
(grifei)
É importante reconhecer que a pessoa jurídica não
pode ser manipulada, com o ilícito objetivo de viabilizar o abuso de
direito e a prática de fraude, principalmente no que concerne aos
procedimentos licitatórios, pois essas são ideias que se revelam
frontalmente contrárias ao dever de moralidade e de probidade, que
constituem deveres que se impõem à observância da Administração Pública e
dos participantes. O licitante de má-fé, por isso mesmo, deve ter a sua
conduta sumariamente repelida pela atuação das entidades estatais e de
seus órgãos de controle, que não podem tolerar o abuso de direito e a
fraude como práticas descaracterizadoras da essência ética do processo
licitatório.
Vale referir, neste ponto, a edição de importante
instrumento normativo, qual seja a Lei nº 12.846, publicada em 1º de
agosto de 2013, ainda em período de “vacatio legis”, que dispõe “sobre a
responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela
prática de atos contra a administração pública (…)”, e que disciplina,
entre outros dispositivos, a matéria que se vem analisando:
“Art. 5º Constituem atos lesivos à administração
pública, nacional ou estrangeira, para os fins desta Lei, todos aqueles
praticados pelas pessoas jurídicas mencionadas no parágrafo único do
art. 1º, que atentem contra o patrimônio público nacional ou
estrangeiro, contra princípios da administração pública ou contra os
compromissos internacionais assumidos pelo Brasil, assim definidos:
…...................................................................................................
III – comprovadamente, utilizar-se de interposta
pessoa física ou jurídica para ocultar ou dissimular seus reais
interesses ou a identidade dos beneficiários dos atos praticados;
IV – no tocante a licitações e contratos:
….........................................................................................
e) criar, de modo fraudulento ou irregular, pessoa
jurídica para participar de licitação pública ou celebrar contrato
administrativo;
…..........................................................................................
Art. 14. A personalidade jurídica poderá ser
desconsiderada sempre que utilizada com abuso do direito para facilitar,
encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta Lei
ou para provocar confusão patrimonial, sendo estendidos todos os efeitos
das sanções aplicadas à pessoa jurídica aos seus administradores e
sócios com poderes de administração, observados o contraditório e a
ampla defesa.” (grifei)
É preciso reconhecer, presente esse contexto, que a
desconsideração da personalidade jurídica, como anteriormente
assinalado, configura prática excepcional, cuja efetivação impõe ao
Estado a necessária observância de postulados básicos como a garantia do
“due process of law”, que representa indisponível prerrogativa de
índole constitucional assegurada à generalidade das pessoas.
No que se refere à alegada violação ao art. 5º,
inciso XLV, da Constituição Federal, não se desconhece que o postulado
da intranscendência impede que sanções e restrições de ordem jurídica
superem a dimensão estritamente pessoal do infrator.
Na realidade, essa tem sido a percepção do tema no
âmbito da própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (AC
266-QO/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO – AC 1.033-AgR-QO/DF, Rel. Min.
CELSO DE MELLO – AC 1.761/AP, Rel. Min. EROS GRAU – AC 1.936/SE, Rel.
Min. RICARDO LEWANDOWSKI – AC 2.228/DF, Rel. Min. AYRES BRITTO – AC
2.270/ES, Rel. Min. CEZAR PELUSO – AC 2.317-MC-REF/MA, Rel. Min. CELSO
DE MELLO – ACO 925-MC-REF/RN, Rel. Min. CELSO DE MELLO – ACO 970-TA/PA,
Rel. Min. GILMAR MENDES, v.g.), cujos pronunciamentos põem em evidência o
fato de que medidas restritivas de ordem jurídica não podem transcender
a esfera subjetiva daquele que incidiu em práticas reputadas ilícitas
pela Administração Pública.
Cabe relembrar, no entanto, por oportuno, a
esclarecedora lição de MARÇAL JUSTEN FILHO (“Comentários à Lei de
Licitações e Contratos Administrativos”, p. 1.014, item n. 1.5, 15ª ed.,
2012, Dialética), ao comentar essa matéria, especificamente no que se
refere ao procedimento licitatório:
“É usual submeter essa discussão à figura da
desconsideração da pessoa jurídica. O tema foi versado em várias
passagens anteriormente. Tem-se reputado cabível a extensão do
sancionamento à pessoa física ou a terceiros na medida em que se
evidencie a utilização fraudulenta e abusiva da pessoa jurídica. Isso
não equivale a estabelecer que toda e qualquer penalidade administrativa
será automaticamente aplicada também aos controladores e
administradores. O que se reconhece é que, diante da comprovação da
prática reprovável da pessoa física, que configure utilização abusiva e
fraudulenta da pessoa jurídica, poderá ser admitida a extensão da
penalidade também a outros sujeitos.” (grifei)
Todas as considerações que venho de fazer, ainda que
expostas em sede de sumária cognição e fundadas em juízo meramente
precário (sem qualquer manifestação conclusiva, portanto, em torno da
postulação mandamental), levar-me-iam a denegar o pleito cautelar ora
deduzido na presente causa.
Ocorre, no entanto, que razões de prudência e o
reconhecimento da plausibilidade jurídica da pretensão deduzida pela
parte impetrante impõem que se outorgue, na espécie, a pretendida tutela
cautelar, seja porque esta Suprema Corte ainda não se pronunciou sobre a
validade da aplicação da “disregard doctrine” no âmbito dos
procedimentos administrativos, seja porque há eminentes doutrinadores,
apoiados na cláusula constitucional da reserva de jurisdição, que
entendem imprescindível a existência de ato jurisdicional para legitimar
a desconsideração da personalidade jurídica (o que tornaria
inadmissível a utilização dessa técnica por órgãos e Tribunais
administrativos), seja porque se mostra relevante examinar o tema da
desconsideração expansiva da personalidade civil em face do princípio da
intranscendência das sanções administrativas e das medidas restritivas
de direitos, seja, ainda, porque assume significativa importância o
debate em torno da possibilidade de utilização da “disregard doctrine”,
pela própria Administração Pública, agindo “pro domo sua”, examinada
essa específica questão na perspectiva do princípio da legalidade.
Sendo assim, em sede de estrita delibação, e sem
prejuízo de ulterior reexame da pretensão mandamental deduzida na
presente causa, defiro o pedido de medida liminar, para suspender,
cautelarmente, a eficácia do item 9.4 do Acórdão nº 2.593/2013 do
Plenário do E. Tribunal de Contas da União.
Comunique-se, com urgência, transmitindo-se cópia da presente decisão à Presidência do E. Tribunal de Contas da União.
2. Requisitem-se informações ao E. Tribunal de Contas da União, órgão apontado como coator.
3. Dê-se ciência ao eminente Senhor Advogado-Geral
da União (Lei Complementa nº 73/93, art. 4º, III, e art. 38, c/c o art.
7º, II, da Lei nº 12.016/2009 e o art. 6º, “caput”, da Lei nº 9.028/95).
Publique-se.
Brasília, 11 de novembro de 2013.
Ministro CELSO DE MELLO
Relator
*decisão publicada no DJe de 13.11.2013
**nomes suprimidos pelo Informativo